« Este fidalgo era muito manhoso (2) e gentil cavalgador de gineta (3). E porque a rainha D. Isabel [a Católica] ouvira dizer que era para muito, andando ele lá em Castela por embaixador, desejou ver alguma cousa que disso a certificasse. E, estando para ver correr uns touros em Arévalo, mandou-lhe dizer que se viesse de um palanque onde estava para uma casa onde ela estava com el-rei [Fernando de Aragão]; e com este recado mandou outro: que em ele atravessando a praça, soltassem o mais bravo touro. Fez-se assim; e a gente que não estava ainda recolhida acolheu-se toda aos palanques, ficando só D. João no terreiro vestido num capuz com sua espada a tiracolo. E o touro indo-se a ele, não fez D. João mais mudança que despir o capuz e pô-lo no ombro; e o touro chegando, lançou-lho e, arrancando da espada, de um só golpe que lhe deu lhe cortou o pescoço apartado do corpo. E, alimpando a espada no touro, tomou o capuz e foi-se à rainha sem perder os pantufos (4). E a rainha disse-lhe:
- Boa sorte fizestes, embaixador!
E ele respondeu-lhe:
- Senhora, outro tanto faria qualquer português.»
(1) D. João de Sousa: foi senhor de Sagres e Nisa e guarda-mor de D. Manuel. Acompanhou o pai, Rui de Sousa, na missão a Castela para negociar o Tratado de Tordesilhas. Foi nessa ocasião que se passou o episódio da tourada, ao qual também fazem referência Garcia de Resende na Crónica de D. João II, cap. 96 [pude confirmar e na verdade é o LXXX], e D. António Caetano de Sousa na História Genealógica, t. XII, parte II, cap. XXIV; a versão de Garcia de Resende é diferente: D. João era um dos toureiros a cavalo que tomavam parte na corrida. Rui de Sousa, o pai de D. João, foi homem da confiança de D João II e de D. Manuel e gozou de um extraordinário prestígio na sua época: «foi o maior homem daqueles tempos», diz dele o Nobiliário das Famílias de Portugal, Título Sousas.
(2) Muito manhoso: com muitas qualidades ou habilidade.
(3) Gineta: maneira de montar, com estribos curtos, arções muito altos e freio diferente do que se usava na brida.
(4) Sem perder os pantufos: sem correr,isto é, com passo normal.»
Texto e notas: Ditos Portugueses Dignos de Memória: História íntima do século XVI anotada e comentada por José H. Saraiva, 3ª ed., Mem Martins, Europa-América, 1997, 284 (p. 115).
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