"Vindos de Vieira de Leiria à procura de sustento, foram subindo o rio / vivendo nos barcos, até que..."
Por Mário Costa"
...galgaram / as margens. São uma / cultura única / no Mundo. São conhecidos / como os ciganos do rio".
«Deixa ir assim, vai devagar para a rede não prender. Leva o barco mais para aquele lado; isso, assim está bom.» Quem dita as ordens é Mário João Petinga, de 44 anos, pescador, que, de pé na popa da sua bateira, vai lançando as redes ao Tejo. Aos remos, na proa, Luís Cosme, de 50 anos, manobra com agilidade, respeitando as ordens do «lançador». Os remos entram e saem da água em ritmo compassado e vigoroso, enquanto a pequena embarcação vai descrevendo um arco perfeito, como se traçado por um compasso.
Quando a rede fica toda dentro de água, a bateira imobiliza-se. Resta esperar. Mário João acende um cigarro e deita um olhar demorado ao rio para depois sentenciar: «Aqui não vai dar nada, a fataça vem a cair. Devíamos ter feito o lance mais abaixo.» A fataça a cair significa que vem rápida demais: «Devem ter aberto alguma barragem e o rio leva muita água», explica Luís Cosme.
São os dois pescadores avieiros na aldeia palafita das Caneiras, em Santarém, embora só Mário João viva exclusivamente do que o rio dá.
Mas não são meros pescadores ou homens da borda-d’água. São herdeiros de uma cultura ancestral, única no Mundo, espalhada pelas margens do rio Tejo desde 1850. A história deste povo e destas aldeias perde-se na bruma do tempo, com muito poucos registos escritos. O que se sabe foi sendo transmitido de boca em boca.
Num ponto, todos os historiadores são unânimes: esta gente é oriunda da praia de Vieira de Leiria, na Região Centro – daí o nome de Avieiros, e foi a procura de melhor vida que os levou a procurarem sustento no rio Tejo. No Inverno, quando o mar de Vieira de Leiria se mostrava pouco generoso, famílias inteiras deslocavam-se em campanha até ao Tejo, onde em pequenos barcos pescavam sável, enguia, fataça, lampreia e robalo.
Navegavam em pequenos barcos, as bateiras, que, além de serem o principal instrumento de trabalho, eram a própria casa do pescador e da sua família: ali trabalhavam, dormiam, comiam. Era também ali, no barco, que muitas vezes nasciam e eram criados os filhos. Um mundo fechado, com regras próprias, fruto também da rejeição a que foram inicialmente votados pelos naturais daquela região.
«Vamos lá ver o que deu», diz Mário João, pondo-se de pé na bateira, ao mesmo tempo que começa a recolher as redes. Na proa, Luís começa a remar devagar, acompanhando o ritmo da recolha das redes. O barco navega agora em sentido contrário, desfazendo o arco, em direcção à bóia de sinalização que marca o início da rede. Mário João tinha razão: a espera só deu uma fataça. «Já temos almoço», diz Luís Cosme a rir, ao mesmo tempo que recolhe os remos. Com as redes recolhidas, Mário João volta a ligar o motor e manobra lentamente, sempre a olhar para o rio, como se estivesse a ler-lhe as intenções: «Vamos tentar ali mais abaixo, na ponta daquele mouchão, ali é capaz de dar», diz enquanto vira a bateira para o local escolhido. (Os mouchões são pequenas ilhas formadas por aluviões.)
Luís volta aos remos e começa nova manobra, enquanto Mário João faz novo lance. A sorte está lançada. Resta esperar para saber como vai ser a pescaria.
«Habitualmente, a pesca era feita em família, o casal ia junto para o rio. E esta tarefa, dos remos, que é pesada, era feita pelas mulheres. Enquanto o homem lançava as redes, era a mulher que manobrava o barco, que remava. Só quando era preciso é que o homem corrigia com a vara», explica Luís Cosme.
Com o fim das campanhas do sável, lampreia, robalo e enguia, os avieiros regressavam a Vieira de Leiria, muitas vezes a pé! Mas o pouco sustento do mar, que só no Verão era rentável, fazia-os regressar cada vez com mais frequência ao rio Tejo.
Talvez por isso, no seu livro Avieiros, o escritor neo-realista Alves Redol lhes chame «ciganos do rio». Mas esse nome pode também ter surgido pelo facto de os avieiros, enquanto sociedade fechada e rejeitada, terem o hábito de casar entre si, tal como fazem os ciganos. «Os avieiros casavam entre si até como forma de protecção, para se defenderem. Era uma forma de preservarem o conhecimento que tinham das artes do rio e para darem continuidade às suas tradições», explica Luís Cosme, enquanto começa a remar novamente para recolher as redes. Mário João vai puxando lentamente as artes, e desta vez o rio foi mais generoso: das redes caem mais seis fataças. O almoço está mais que garantido.
A cultura avieira teve sempre como pedra de suporte a família, não apenas o núcleo restrito, mas a família alargada, que funcionava, e funciona, como uma rede de afectos e ajuda quase auto-suficiente.
Júlia Guerra, viúva, de 83 anos, marcados pela vida dura do rio, ainda hoje se dedica a reparar as redes de pesca: «Passei toda a minha vida no rio. O meu pai era doente e não podia andar na pesca. Então, fui eu para o lugar dele, trabalhar por conta de outro. Depois, quando casei, ia para a pesca com o meu marido. Noite e dia, principalmente quando era das campanhas da lampreia, do sável.
Agora, ajudo o meu filho, reparo-lhe as redes e preparo-lhe as artes», explica num encolher de ombros. Longe vai o tempo em que Júlia Guerra, além da pesca, ainda tinha de ir vender no mercado de Santarém: «Olhe, ia daqui a pé para a cidade com uma canastra à cabeça cheia de peixe. Era uma hora para lá e outra hora para cá para poder vender o que se pescava, para arranjar uns tostões para dar de comer aos filhos. Era uma vida muito dura», recorda, pensativa.
Mas a abertura da sociedade avieira e a sua aceitação pelos outros eram inevitáveis, até porque no Ribatejo sempre se precisou de mão-de-obra para os trabalhos no campo. A pouco e pouco, foram-se integrando na região e fazendo também alguns trabalhos agrícolas, sobretudo nas culturas sazonais do milho e do tomate.
Actividades que levaram os pescadores a começarem a fixar-se ao longo das margens do Tejo. Casa Branca, Conchoso e Lezirão, no concelho da Azambuja; Palhota, no concelho do Cartaxo; Escaroupim e Muge, no concelho de Salvaterra de Magos; Caneiras, em Santarém; Patacão, em Alpiarça, e Carregado e Vila Franca de Xira são apenas alguns dos locais onde os avieiros se foram instalando. Lentamente, foram abandonando o barco onde sempre viveram e mudaram-se para barracas de lona ou caniço assentes em estacas.
Serviam para as campanhas sazonais de pesca, mas revelavam-se desadequadas quando as estadas eram prolongadas e demasiado precárias para suportar as cheias do Tejo.
Quando as condições económicas começaram a permitir, este povo, que se fez nómada por necessidade, começou a construir casas com características bem diferentes das casas ribatejanas: nasciam assim as aldeias palafitas (casas assentes em estacas elevadas), típicas da praia de Vieira de Leiria, mas ideais para protecção das cheias do Tejo e que, ao mesmo tempo, permitiam que o pescador estivesse sempre perto do barco.
«Os dados que temos dizem-nos que chegou a haver cerca de 80 assentamentos, ou aldeias, ao longo do Tejo. Imagine a vida que este rio tinha nos finais do século xix e primeira metade do século xx. A presença só começa a diminuir a partir da década de 60, com a primeira leva de emigração e com a industrialização que ocorreu junto do rio», explica às Selecções João Serrano, coordenador de um projecto ambicioso de recuperação da cultura avieira e da sua promoção a património nacional.
«Ao todo, são 39 entidades que estão envolvidas num projecto que pretende não só recuperar a cultura avieira, mas também aproveitar todo o potencial que o rio Tejo oferece para criar uma rede de oferta cultural e turística, salvaguardando património e criando riqueza», explica João Serrano.
O projecto engloba oito projectos Âncora, todos na área da recuperação do património edificado e cultural, e 48 projectos complementares, que passam pela construção de um resort de casas palafitas, oferta hoteleira, restauração, passeios de barco, roteiros pedestres nas margens. Uma oferta em rede nas duas margens, desde a aldeia da Azinhaga, na Golegã, até à marina do Parque das Nações, em Lisboa, num total de 27 milhões de euros.
Manuel João, de 41 anos, faz parte da quarta geração de avieiros nas Caneiras e é um dos investidores deste projecto: «Quero fazer um restaurante típico onde o visitante possa provar a gastronomia típica do rio, a fataça, o sável, a lampreia, o robalo, numa paisagem única neste país», diz enquanto nos mostra a fantástica vista que tem sobre o rio e onde pensa fazer uma esplanada. A paisagem é quase idílica. À frente, o rio e as suas margens, emoldurados pelos chorões, salgueiros e caniços. Em redor, o silêncio, que só é interrompido pelos barcos, pelas conversas de rua ou pelo latido dos cães.
Para o sucesso destes projectos, contribui também o facto de estas aldeias, nomeadamente as Caneiras, estarem a ser repovoadas: «Os avieiros estão a voltar à aldeia. Houve um êxodo por causa da emigração e da industrialização. As pessoas empregaram-se e voltaram costas ao rio. Agora, a crise, a necessidade de deitar mãos a outras actividades e a reforma para muitos estão a trazer as pessoas de volta à aldeia e às actividades no rio», dá conta João Serrano.
Aproxima-se a hora do almoço. Luís Cosme assume a tarefa de cozinhar-nos a fataça como só os avieiros sabem fazer e promete-nos uma surpresa. Os nossos estômagos, estimulados pelo ar do rio, mal podem esperar pela iguaria. Enquanto fazemos o compasso de espera, voltamos novamente ao rio com o Mário João Petinga. Lentamente e em ziguezague, para evitar os bancos de areia, subimos o Tejo e passamos por debaixo da Ponte Salgueiro Maia. Pouco depois, Mário João desliga o motor.
Agarra na vara e manobra o Ana Catarina por entre pedras e baixios: «O rio tem muitas surpresas, e esta é uma delas. Isto são ruínas romanas de uma aldeia que aqui existiu quando o Tejo não passava aqui, mas mais a sul.» Ficamos espantados. Mas os restos de uma mina e as paredes em redor, tudo submerso mas visível, não deixam dúvidas. São os restos de uma aldeia romana de dimensões generosas. Ficaram a descoberto depois da construção da ponte.
Regressamos a terra à procura da fataça grelhada. No pátio de casa, Luís Cosme apresenta-nos uma iguaria única: uma sopa do rio. À primeira vista, parece tratar-se de uma sopa de peixe, mas não, porque aqui o peixe é servido à parte para depois se degustar com a sopa bem temperada. Mal refeitos da surpresa, somos surpreendidos por uma fataça grelhada com uma variação de molho à espanhola (o segredo não é revelado), batata e uma bela salada. E o cenário não podia ser melhor: à beira-rio. Ah, e um bom vinho branco, produção local.
Para recuperar do almoço, fazemos uma visita pela aldeia. O Tejo pouca água leva, e a chuva teima em não cair. Nos vários ancoradouros ao longo da margem, vêem-se barcos, alguns já em fim de vida.
«Antes, quase não se viam barcos. Agora, há trinta barcos na aldeia, todos a navegarem», explica Mário João, que teimosamente vive da pesca. Mas a pesca dá para viver? «Depende do modo de vida que se pretende», responde Mário João. «Mas dá, está a voltar a dar. O Tejo está melhor. Sinal disso é começarem a aparecer as corvinas.» E os mais jovens, os que são agora a quinta geração de avieiros, começam também a olhar para o rio. Um novo ciclo se avizinha.
Entre as casas, sobressaem as mais típicas, as de madeira, assentes em colunas de cimento na sua construção palafita. No meio, a igreja, centro da religiosidade, mas também ponto de encontro da aldeia. As ruas estreitas, estão vazias. Mas por pouco tempo. Dentro em breve, a aldeia poderá começar a receber turistas para experiências únicas (ver caixa) de partilha e comunhão com uma cultura única no Mundo.
Avieiro sem alcunha não é avieiro
Uma das características mais curiosas dos avieiros é o facto de todos, sem excepção, possuírem uma alcunha desde crianças que perdura pela vida fora.
«É uma tradição que ninguém sabe explicar, mas todos temos um segundo nome pelo qual somos conhecidos pelos outros avieiros», explica Luís Cosme, ele próprio conhecido como «Cosminha».
Mário João Petinga, o paciente timoneiro que nos conduziu no Tejo, responde pelo nome de «Cientista». Já Manuel João, que sonha com o seu restaurante, foi apelidado de «Póri». E para que não restem dúvidas, são todos oriundos de vários ramos da família «Botas».
Avieiro por um dia
Um dos projectos a desenvolver nas Caneiras é um programa que leva o visitante a vestir a pele de pescador. Nem mais. As primeiras experiências já começaram e vão permitir que casais, ou grupos, possam ir para o rio pescar. São ensinadas as artes e modos de pesca, com direito a um lanche a bordo. Depois, os participantes são convidados a cozinhar eles mesmos a sua própria refeição com o peixe que tiverem apanhado. E isso pode ser feito numa praia, a bordo ou já em terra firme.
Depende do desejado. E mais tarde, caso queira, o visitante pode mesmo pernoitar na aldeia e sentir em pleno a vivência dos avieiros.
in... Reader´s Digest
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