segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Os milionários de Salazar


Os milionários de Salazar

(Na foto o ditador com Ricardo Espirito Santo - BES - Centro de História)
Livro de Pedro Jorge Castro com base no espólio de cartas privadas da alta finança ao ditador revela um cordão umbilical a nu.
Porque se mantém o Governo numa posição de favorecimento da burguesia capitalista", interrogava-se Marcello Caetano numa carta de denúncia de um rol de escândalos, enviada ao ditador António de Oliveira Salazar em 1944. Uma linguagem que poderia parecer decalcada, em algumas frases retiradas do contexto, do "Avante!" clandestino que, naquele ano, falaria das duras e muito reprimidas greves de Maio.

A burguesia a que se referia Caetano , então ministro das Colónias, era a alta camada monopolista e financeira. Esta classe começara a consolidar-se sob o regaço do novo regime, protegida da concorrência nacional e estrangeira pelo célebre condicionamento industrial (estabelecido em 1931), encontrando recursos baratos e até mercado cativo no império colonial (cuja conservação era o principal objectivo geopolítico do Estado Novo) e vivendo estreitamente das boas graças no relacionamento pessoal ou, via terceiros, com Oliveira Salazar. A quem não poucas vezes pediam a sua "alta intervenção" e se lhe dirigiam, com alguma intimidade, como "meu querido amigo".
A história do relacionamento com o Estado Novo desta burguesia capitalista que "confrangia" Caetano, é o pano de fundo das mais de 400 páginas de "Salazar e os Milionários", a lançar dia 26 pela editora Quetzal. A obra, escrita por Pedro Jorge Castro, jornalista da revista "Sábado", é um aprofundamento da investigação que publicou naquela revista desde Abril deste ano.
O livro, repleto de detalhes saídos de uma pesquisa própria em diversos arquivos e baseada em leituras do que se publicou depois de 1974 sobre o ditador e a ditadura, dá de Salazar uma imagem bem real e, por vezes, patética: um político agarrado às suas botinhas de pelica; que comia canja oferecida por uma dona de pensão; que regateava orçamentos de fornecedores; que apadrinhava o negócio das capoeiras e horta nos jardins do Palácio de São Bento gerido pela sua governanta; que nunca, enquanto presidente do Conselho, foi mais além do que a fronteira, embevecendo-se com as histórias contadas pelas namoradas ou pelos seus amigos milionários, olhando o mundo através dessas "viagens formidáveis" e dos postaizinhos de correio que lhe mandavam, como anotava meticulosamente no seu diário.
Esta imagem de um rural beirão de Santa Comba na capital do império contrastava com a realidade económica de alta concentração financeira de um país onde, nos anos 1950, apenas 34 empresas detinham mais de 40% do capital social. No final da sua obra de gestão económica do país, já depois de cair da cadeira de lona (ou na banheira) no Forte do Estoril em Setembro de 1968, apenas 10 famílias dominavam 50% da riqueza nacional em 1970, sublinha Pedro Jorge Castro.
Uma relação íntima Uma das famílias da alta finança que recebe destaque neste livro é a dos banqueiros Espírito Santo, que ocupa a segunda parte com quase 100 páginas. Ricardo Espírito Santo e Silva (na foto com Salazar) assumira a direcção do Banco da família (o BESCL) em 1932, justamente no ano em que o ditador passaria a presidente do Conselho de Ministros. Liderava o maior grupo financeiro da época e tinha o privilégio de ser um amigo muito especial de Salazar. Sobre as outras famílias milionárias do regime, o livro escolhe mais onze (Alfredo da Silva/Mello, Champalimaud, Cupertino de Miranda, Queiroz Pereira, Manuel Bulhosa, Medeiros e Almeida, Delfim Ferreira, Moniz da Maia, Miguel Quina, Fino e, por fim, Sousa e Holstein Beck). Todos eles se esmeravam em cartas para o ditador que o livro compila em anexos documentais que dão bem a imagem do cordão umbilical entre o poder político e o económico e financeiro.
Um complemento interessante teria sido enquadrar os negócios e iniciativas destes milionários no processo evolutivo, por vezes em ziguezague, da estratégia económica da ditadura: desde o Acto Colonial, às negociações do Plano Marshall, à tentativa de política industrial sistemática de Ferreira Dias (secretário de Estado do Comércio e Indústria e depois ministro da Economia) para evitar que o país continuasse a ser "uma horta", até à adesão à EFTA, confirmando a guinada para a Europa.

Disseram

"Deixa-se por exemplo criar a convicção de que quem põe e dispõe nos bastidores são os homens de negócios, os homens do dinheiro"
Marcello Caetano, ministro das Colónias e presidente da Comissão Executiva da União Nacional, carta enviada a Salazar, 25/1/1944

"Tenho muita pena de não ir aí hoje, a nossa conversa dominical é para mim o maior prazer da semana, mas obedeço na esperança de que serei compensado"
Ricardo Espírito Santo e Silva, presidente do BESCL, carta enviada a Salazar, 1951

"O senhor professor tinha muito medo dos empresários que queriam mudar tudo a correr"
Maria de Jesus Freire, governanta de Salazar

"Aquilo tinha de ser tudo ao ritmo dele, das conjecturas que lhe iam na cabeça, da sua visão global"
António Champalimaud, industrial, opinando sobre Salazar

Texto publicado na edição do Expresso de 21 de Novembro de 2009

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