Guarda, Alpedrinha, Leiria, Nazaré, Vila Viçosa, Beja, “não oferecem, todas juntas, um espectáculo comparável” à “mortandade horrorosa” cometida por Loison em Évora a partir das quatro da tarde daquele dia 29 de Julho, informa Acúrsio das Neves. Junot entregou-lhe uma divisão de 6 mil infantes e cinco esquadrões de Cavalaria, que embarcaram para Cacilhas na manhã de 26 de Julho, chegando à vista de Évora na “fatal” data que a cidade – a terceira do reino, ao tempo – há-de chorar. As forças que a defendem dispõem de poderosos meios de artilharia mas não totalizam mais de 2 mil homens: 700 tropas portuguesas “com alguma instrução”; cerca de 400 da chamada legião estrangeira de Badajoz, muitos dos quais também portugueses; 600 homens de vários corpos espanhóis; e “gente colectícia – padres, frades, paisanos de várias condições sociais armados de chuços, foices roçadoras, machados e outras que tais armas”.O Corpo que Loison comanda directamente dirige-se “em luta aberta” contra os atiradores milicianos que guarnecem a capela de Nossa Senhora da Ajuda, edificada sobre as duas torres da Porta de Alconchel. Sessenta minutos de “terrível fuzilaria” demorou a defesa desta posição, auxiliada pelo tiroteio “dos bravos e enraivecidos eborenses”, entre os quais se salientavam os monges do Convento dos Remédios.Estoirada a Porta de Alconchel, a cidade torna-se “pasto da soldadesca ínfreme e sequiosa de sangue”, quando, pelas quatro da tarde, “tocou à degola e começou a mortandade da população”. O bispo corre à Catedral, ameaçada de destruição por dois canhões assestados sobre a fachada. Frei Manuel do Cenáculo prepara-se, no seu sólio, rodeado pelo cabido, para receber o comandante das forças, que disparam indistintamente sobre os altares e populares desarmados. Loison manda um intérprete dizer-lhe que o espera no Paço, ali mesmo pegado.- Monsenhor arcebispo, assinou um decreto contra a França, é réu de morte, grita-lhe o general, “com gesto feroz e ameaçador”. Ordena, em seguida, que se arvore a bandeira francesa na mais alta das três torres da Sé e determina o aboletamento seu e de mais 40 oficiais superiores nos aposentos do palácio.Os novos senhores da cidade obrigam criados, clérigos, frades “e também alguns senhores” que ali se refugiaram “a que os servissem de pronto, e isto com pontapés, bofetões e ameaços de espadas e pistolas”. Após o que dirigiram “um saque tão sistemático da casa, que nada escapou de valia”, incluindo o anel, arrancado do dedo episcopal. Não se entendem, como de costume, os autores, sobre o número de baixas. Fontes do estado-maior invasor calculam que o custo da operação militar – excluindo, portanto, a “carnagem” que se lhe seguiu – chegou a cinco mil mortos e dois mil feridos e prisioneiros, do lado português. Vasco Pulido Valente diz que as execuções com que se celebrou a vitória aumentaram a conta para oito mil mortos “e não se sabe quantos feridos”. Túlio Espanca dá o maior crédito às cifras avançadas por um padre, testemunha ocular: mais de 1 500 mortos. Estimativas mais modestas põem em 800 os que morreram nas linhas de combate e em 38 padres e freiras e 232 “seculares” os que foram chacinados na “deplorável catástrofe do fatal tríduo de 29, 30 e 31 de Julho de 1808”, como chora o secretário do Santo Ofício, Padre José Joaquim da Silva, na sua memória histórica Évora Lastimosa. Uma das duas lápidas de mármore, “embebidas” nas paredes laterais dos paços do concelho de Évora, 79 anos depois do massacre de Loison, como evocação da resistência da cidade e do seu arcebispo, jaz, hoje, nos arredores, num parque municipal, entre ferro velho e um menir abandonado.As inscrições, em latim uma, em português a outra, engrandecem a figura do herói do “tríduo”, frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, que “pedindo e suplicando a paz, obteve o dom da piedade e manteve a cidade livre da ruína” de maior fúria do invasor.Na própria Sé, a placa comemorativa passou, há 70 anos, de uma das nove capelas para a parede do lado direito de quem entra, junto das escadas que conduzem às torres do templo. O sólio – donde o arcebispo desceu, à vista dos oficiais vencedores e dos soldados que lhe apontavam baionetas ao peito e gritavam por dinheiro, ameaçando de morte e saque violento, para lhes suplicar “humildemente” pela vida do seu “pobre povo” – perdeu dois degraus, serrados para nele se acomodar o papa João Paulo II, e foi mudado, da parede do lado esquerdo para meio do altar-mor.Debalde procuraremos, nos arredores da cidade – artigo de Túlio Espanca nas mãos e a preciosa colaboração da historiadora Conceição Retorta, da Câmara de Évora – pelas alminhas. Na ponte primitiva do Xarrama; sobre o muro da quinta do Sande; no portão da quinta do Bacelo – nenhum sinal do paralelepídedo azul, rendado e florido, que nas traseiras da quinta do Andrade deveria pedir ainda um P.N.A.M. pelas almas dos que ali pereceram “às mãos dos francezes no anno de 1808”. A poucas centenas de metros de distância da Sé, na Capela dos Ossos (“Nós outros que aqui estamos, pelos vossos esperamos”), a própria funcionária de serviço faz uma pausa na bilheteira para vir observar o túmulo para o qual o fotógrafo do P2 dispara repetidos flashes.Como se pela primeira vez estivesse a ver que D. Jacinto Carlos da Silveira, bispo titular do Maranhão, evocado na lápide, a meio, diante do altar, pertenceu afinal a alguém “morto pelos inimigos da Pátria no dia 29 de Julho de 1808”. Ali mesmo ao lado, na esquina do Largo da Graça com a Rua da República, num palácio hoje residência particular.
*****
Fontes principais: Raul Brandão, El-rei Junot, Atlântida Editora, Coimbra, 1974; Paul Thiébault, Relation de l”expedition de Portugal, Paris, 1817; José Acúrcio das Neves, História geral da invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste reino, Edições Afrontamento; J.J. Teixeira Botelho, História Popular da Guerra Peninsular, Lello & Irmão, Editores, Porto, 1915; Túlio Espanca, Évora na Invasão Francesa de 1808, in A Cidade de Évora, Boletim da Comissão Municipal de Turismo, nº 39-40, 1957-58; Frei Manuel do Cenáculo, História descritiva do assalto, entrada e saque da cidade de Évora pelos franceses, em 1808, (Publicação de A.F.Barata) in 4º, Minerva Eborense, Évora, 1887; Padre José Joaquim da Silva, Évora Lastimosa, 1814; Vasco Pulido Valente, Ir Pró Maneta. A Revolta contra os Franceses, Alêtheia Editores, Lisboa, 2007.In PÚBLICO – 18.11.2007
Sem comentários:
Enviar um comentário